Ursula K. Le Guin : um vulcão que alterou o mapa da ficção científica.

“As únicas perguntas que realmente importam são as que você faz a si mesmo. Nós somos vulcões. Quando nós, mulheres, oferecemos nossas experiências como nossas verdades, como verdades humanas, todos os mapas mudam. Surgem novas montanhas.”

Ursula Kroeber Le Guin (1929-2018) é autora de 23 romances, 12 volumes de contos, 11 volumes de poesia, 13 livros infantis, 5 coleções de ensaios e 4 traduções.. Sua profunda imaginação lhe rendeu premiações e reconhecimentos; ganhou seis vezes o Nebula Awards e sete o Hugo Awards.

Para ter uma visão aproximada deste multiversa existência, recomendo o site : https://www.ursulakleguin.com/

Neste artigo vou focar na tessitura de um dos livros do Ciclo de Hainish: Os despossuídos .

A proposta é destacar da leitura, o modo como Ursula revolucionou a ficção, explicitando sua crítica ao modelo da Jornada do herói.

Em sua teoria da bolsa da ficção, Ursula K. Le Guin, explica :

“Se a ficção científica é a mitologia da tecnologia moderna, então o mito é trágico. “Tecnologia”, ou “ciência moderna” (utilizando estas palavras como elas geralmente são usadas, ou seja como uma atenuação irrefletida para ciência “dura” e a tecnologia de ponta fundadas num crescimento contínuo), é um empreendimento heróico, hercúleo, Prometeico, concebido como um triunfo; e portanto, em última instância como uma tragédia. A ficção que encarna este mito será, e tem sido , triunfante (o Homem conquista a terra, o espaço, os alienígenas, a morte, o futuro, etc) e trágica (apocalipse, holocausto, então ou agora).

Se, no entanto, se evita o modo Tecno-Heróico linear, progressivo, da flecha (assassina) do Tempo, e se redefine a tecnologia e a ciência como sendo fundamentalmente uma bolsa de cultura em vez de uma arma de dominação, um efeito colateral agradável é o de que a ficção científica pode ser vista como um campo muito menos rígido e estreito, não necessariamente prometeico ou apocalíptico e , de fato, um gênero menos mitológico do que realista.

De um realismo estranho, porém a realidade é estranha.

Os Depossuídos : publicado em 1974

Os Despossuídos é um ótimo exemplo desta escrita ficcional onde o protagonista se define por uma fidelidade à sua cultura e reconhece as fragilidades e incongruências de sua sociedade. É um romance de formação, acompanhamos o amadurecimento de um personagem, que terá de ultrapassar várias tensões (emocionais, sociais, relacionais) mas o modo que faz isto não requer violência.

Neste livro de Ursula temos dois movimentos :

  • a jornada do protagonista : Shevek indo e voltando ao planeta capitalista de Urras

  • a história biográfica que motivou o personagem a fazer viagem, revelando a vida cotidiana em Anarres (anarquista)

    Os capítulos salteados entre o passado e o presente geram uma dinâmica processual que nos aproxima das profundas dúvidas e vivências do personagem. Outro fato interessante é que a escritora faz destas revelações e pensamentos de Shevek, um contraponto e espelho dos valores entre as duas sociedades: anarquista e capitalista, pontuando seus paradoxos.

    Uma utopia em curso como revela Ursula no seu ensaio: .“A non-Euclidean view of California as a cold place to be”

“Se utopia é um lugar que não existe, então certamente (como Lao Tzu diria) o caminho para chegar lá é pelo caminho que não é caminho. E da mesma maneira, a natureza da utopia que estou tentando descrever é tal que se vier, já deve existir. Eu acredito que exista: mais claramente como um elemento e tais obras utópicas profundamente insatisfatórias como A Crystal world, de Hudson, e Island, de Aldous Huxley.”

Acho interessante que no próprio título do ensaio o não- Euclidiano já se refere a uma outra perspectiva de entendimento da geometria.

Euclides de Alexandria (330 a.C) criou alguns axiomas e a partir destes, postulados, como aquele em que diz, a grosso modo que : duas retas paralelas jamais se cruzam. Por outro lado, a geometria não euclidiana (também conhecida como a geometria esférica) diz que duas retas podem ser paralelas e ainda assim se intersectarem.

Ursula prefere esta utopia ambígua e na escrita de cenas cotidianas com suas emoções e inseguranças a escritora humaniza e complexifica todos os valores ali envolvidos, deixando o leitor deslocado do seu centro de certezas e poderes. Traz o Tai Chi como referência deste sutil equilíbrio/desequilíbrio.

“O principal elemento utópico em meu romance The Dispossessed é variedade de uma anarquia pacifista, que é tão yin quanto a ideologia política pode ser. Anarquismo rejeita a identificação de civilização com estado, e a identificação de poder com coerção; contra a violência inerente da sociedade ‘quente’ reivindica o valor de tal comportamento antissocial como a recusa geral de mulheres de portar armas em guerra; ou outros dispositivos coiote. Nessas áreas, anarquismo e Taoísmo convergem ambos em matéria e maneira, e então eu venho aqui para jogar meus jogos ficcionais. A estrutura do livro pode sugerir um balanço-em- movimento e recorrência rítmica do Tai Chi, mas seu excesso de yang mostra: embora a utopia era (tanto em fato quanto na ficção) fundada por uma mulher, o protagonista é um homem; e ele a domina, devo dizer, de uma maneira bem masculina.”

Foi preciso, que Shevek saísse de casa, Anarres, e fosse confrontado com outra realidade em Urras para que despertasse nele o sentimento de mudança e transformação de seu próprio planeta. Voltar com as mãos vazias, como sempre estivera, dando real significado ao princípio que defendia :

“E a mão que vocês estendem está vazia, como a minha mão está vazia. Vocês não têm nada. Não possuem nada. Não são donos de nada.

Vocês são livres. Tudo o que vocês têm é aquilo que vocês são, e aquilo que vocês dão.”

(trecho Os Despossuídos -294)

Ursula K. Le Guin nos mostra outros modos de escrever ficção, sua histórias no futuro do presente nos fazem questionar escolhas e convidam a abraçar nossas contradições ; seus sonhos lúcidos abrem as possibilidades de escuta para o outro que posso ser.

Texto dedicado a querida Atencionauta : Ana C. G. Marques uma herdeira direta do legado criativo da escritora.

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