Clarice Lispector : O silêncio é tal que nem o pensamento pensa

Foto de Claudia Andujar para um ensaio na Revista Cláudia em 1962, na parede o quadro de Giorgio De Chirico

"Dá-me a tua mão: Vou agora te contar como entrei no inexpressivo que sempre foi a minha busca cega e secreta. De como entrei naquilo que existe entre o número um e o número dois, de como vi a linha de mistério e fogo, e que é linha sub-reptícia. Entre duas notas de música existe uma nota, entre dois fatos existe um fato, entre dois grãos de areia por mais juntos que estejam existe um intervalo de espaço, existe um sentir que é entre o sentir – nos interstícios da matéria primordial está a linha de mistério e fogo que é a respiração do mundo, e a respiração contínua do mundo é aquilo que ouvimos e chamamos de silêncio.”

A vida é impronunciável

               inefável

     inexprimível

               impalpável

               insondável

               indefinível

               inominável

 Escrever é uma luta entre as palavras e as coisas, entre o simbólico e o real, um conflito do que limita com o que impulsiona. Esta busca leva sempre ao reino do silencioso, que Clarice  revela :

 "que é feito pela mão vazia do homem: entrei no domínio da coisa. 

 A aura é a selva da coisa”

A escritora aprofunda este entendimento do tema num conto chamado Silêncio, nesta selva da coisa não há o que perdoar.  ( livro Onde Estivestes de Noite.)  

"Quantas horas se perdem na escuridão supondo que o silêncio te julga — como esperamos em vão por ser julgados pelo Deus. Surgem as justificações, trágicas justificações forjadas, humildes desculpas até a indignidade.Tão suave é para o ser humano enfim mostrar sua indignidade e ser perdoado com a justificativa de que se é um ser humano humilhado de nascença.Até que se descobre — nem a sua indignidade ele quer.  Ele é o silêncio."

E neste mergulho como num sopro a escritora parece entender : "a vida se me é” e o mundo independe de mim. 

Mas é no seu livro A Paixão segundo G.H. é que a escritora conta como é, permanecer neste estado de fracasso da linguagem possibilitando nascer o que se desconhece.

"Ah, mas para se chegar à mudez, que grande esforço da voz. 

Minha voz é o modo como vou buscar a realidade; a realidade, antes de minha linguagem, existe como um pensamento que não se pensa, mas por fatalidade fui e sou impelida a precisar saber o que o pensamento pensa. 

A realidade antecede a voz que a procura, mas como a terra antecede a árvore, mas como o mundo antecede o homem, mas como o mar antecede a visão do mar, a vida antecede o amor, a matéria do corpo antecede o corpo, e por sua vez a linguagem um dia terá antecedido a posse do silêncio. 

Eu tenho à medida que designo – e este é o esplendor de se ter uma linguagem. 

Mas eu tenho muito mais à medida que não consigo designar. 

A realidade é a matéria-prima, a linguagem é o modo como vou buscá-la – e como não acho. 

Mas é do buscar e não achar que nasce o que eu não conhecia, e que instantaneamente reconheço. A linguagem é o meu esforço humano. Por destino tenho que ir buscar e por destino volto com as mãos vazias. 

Mas – volto com o indizível. 

“ indizível só me poderá ser dado através do fracasso de minha linguagem. 

Só quando falha a construção, é que obtenho o que ela não conseguiu."

Manuscritos de Clarice Lispector no acervo do Instituto Moreira Salles

Clarice traz a importância da pausa, este momento que potencializa todos os significados possíveis, uma espécie de encruzilhada que aprofunda o silêncio entre dois batimentos do coração.

Ela renuncia a ter um significado acabado, pede pra ser ouvida mas deixa claro que o que fala tem sentidos que pulsam e ainda não são dizíveis.

“Minhas desequilibradas palavras são o luxo de meu silêncio. 

Escrevo por acrobáticas e aéreas piruetas - escrevo por profundamente querer falar. 

Embora escrever só esteja me dando a grande medida do silêncio.”

Clarice é assim, ao chegar ao fim do texto chegamos ao início:

"Dá-me a tua mão: Vou agora te contar como entrei no inexpressivo que sempre foi a minha busca cega e secreta.”

E desta forma apertamos mais a mão dela e adentramos passo a passo a profundeza de um silêncio que parece não ter fim.

Referências de algumas prosas sobre o silêncio em Clarice :   

https://site.claricelispector.ims.com.br/

Hélène Cixous ; A hora de Clarice Lispector  

"quando temos um coração que escuta, e ouvimos os outros vivendo, tudo chama e vibra….Mas com demasiada frequência nós nos esquecemos. Não sabemos mais como chamar. Ficamos em silêncio. Nossas línguas são irrespiráveis.  Os nomes se apagam. No escuro, as coisas não existem mais. Nossas línguas estão desertas. Não vivemos mais nelas. Esquecemos de nós mesmos” p49   

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