Vik Muniz : a poética do (extra) ordinário

Vik Muniz nasceu em São Paulo em 1961 e suas obras hoje fazem parte do acervo de importantes museus e instituições no Brasil e no exterior, onde o artista realizou várias exposições individuais. Ficou conhecido pelo grande público com o documentário Lixo extraordinário (Waste Land) de 2010 pelo qual ganhou o prêmio do público, de melhor filme no Festival Sundance de Cinema.

Em entrevista concedida ao Programa Starte (2009) o artista falou de alguns significados que apreendeu a partir da experiência com esses parceiros da cooperativa de catadores de material reciclável em Jardim Gramacho no Rio de Janeiro:

“O que eles me ensinaram é muito mais significante do que eu pude ensinar a eles. O que eu passei para eles, por exemplo é que existem maneiras de se fazer uma coisa se tornar mais interessante, mais bonita, e aquilo tem imediatamente um efeito na maneira com a qual nós nos vemos. O que eles me ensinaram foram coisas muito mais interessantes, eu tinha uma coisa, uma relação com o lixo, eu ando obcecado com o lixo ultimamente. Existe todo um passado seu, o lixo, é tudo que não está no seu álbum de fotografia. Existe o lixo mental, existe o lixo físico, existe o lixo espiritual, imoral. É tudo que você não quer ser realmente. E a gente joga isso fora. Eu fico imaginando se aquilo te seguisse, se você vivesse com aquilo o tempo todo, que efeito aquilo ia ter na sua personalidade, na sua identidade. Agora, essas pessoas, não só elas vivem com o lixo que elas fizeram a vida inteira, como com o de todo mundo. Elas estão no outro lado da sociedade de consumo, e tudo o que a gente joga e não quer mais, eles estão lá recebendo.” (STARTE, 2009)

As obras de Vik Muniz se transformam num híbrido de fotografia e outros segmentos das artes visuais.

Vistas de uma certa distância, como requerem os grandes formatos, os quadros se assemelham a uma imagem fotográfica comum. Numa observação mais próxima, revelam os pormenores dos materiais triviais que compõem os “grãos” da foto, como chocolate, poeira, brinquedos, sucata. Esse efeito de percepção é possibilitado pela fotografia – que permite acentuar, ou não, o que está sendo representado – e pela memória que possuímos da imagem vista em suas obras.

No seu livro Epistemas (2021) o artista explica o surgimento desta relação da escultura com a fotografia:

“Eu descobri a fotografia muito tarde. Em 1988 para ser preciso. Meus primeiros trabalhos como artista resultaram em esculturas. Eram objetos híbridos com funções e significados ambíguos. Embora gostasse de construí-los havia algo na presença deles que muito me incomodava. O fato de poder compartilhar um espaço físico com estas esculturas fazia com que elas se tornassem parte de uma realidade dura e presente que, de alguma forma, as impedia também de ocupar o espaço imaginário de onde elas nasceram. Era como fazer e colocar coisas no mundo, que de certa forma não retomavam ao seu lugar de origem.

Um dia a galeria com a qual eu trabalhava resolveu contratar um fotógrafo profissional para documentar as obras para o arquivo e difusão. Recordo-me de um dia Peter Muscato, esse era o seu nome, um fotógrafo bonitão entrou na galeria com os seus dois assistentes e uma quantidade enorme de equipamentos estranhos. Peter iluminava os objetos com uma teatralidade que os transformava em coisas ideais. O ritual em torno do objeto o fazia parecer que toda a sua execução era apenas para que sobrevivesse até aquele precioso momento. A fotografia me pareceu, de imediato, a apoteose do objeto que eu havia construído.

Alguns dias mais tarde, encontrei Peter na galeria. desta vez trazia consigo uma pasta com cromos transparentes de 4X5 polegadas já revelados para que eu pudesse aprová-los. As obras haviam sido capturadas pelo filme de uma qualidade impecável, uma nitidez absoluta. Tudo parecia perfeito. No entanto, após aprová-las, fiquei com um set de imagens e , por alguma razão, não parei de examiná-las pelo resto da tarde. Havia algo nelas que me incomodava profundamente. Algo pessoal, que embora patente, parecia inexplicável.As fotos do fotógrafo profissional, ainda que perfeitas não estavam “certas”, havia nelas alguma coisa que faltava ou excedia a sua própria interpretação. Passei um ou dois dias tentando saber o que era, sem que encontrasse uma resposta que me satisfizesse por completo.

Pensar e fazer, para mim, são coisas muito ligadas. Quando não consigo resolver algo dentro da minha cabeça, tenho que usar as mãos e algum material para que a coisa faça sentido. Era assim na escola, época em que levava sempre no bolso da calça um punhado de feijões para a aula de matemática, Portanto, eu tinha que repetir o processo para saber o que deveria fazer para que as imagens, além de perfeitas, fossem também “certas”. Para minha sorte, tenho um defeito que muito me serve. cada vez que procura aprender alguma coisa nova, tento fazê-lo sem ler o manual de instruções , sem fazer o curso ou pesquisar a respeito. ………

Em resumo, como nunca tive a oportunidade de fazer uma só aula de fotografia, a experiência prática tornou-se a melhor forma de aprendizado.Com esta brilhante filosofia em mente, fui à loja errada, comprei a câmera errada, carreguei-a com o filme errado, iluminei a obra de forma errada e fotografei da pior maneira possível. levei o filme para revelar no lugar errado e , no final as fotos, por pior que fossem , pareceram-me certas. Passei um longo tempo comparando-as com as imagens perfeitas do fotógrafo profissional com as “certas” que eu havia produzido. teria de haver algo além de uma ilógica vaidade por trás disso.

Ao observar aquelas imagens com atenção percebi que as minhas fotos me conectavam com algo anterior à feitura das esculturas. Uma imagem original que me instruiu a construir os objetos. Ao produzirmos algo tridimensional, o fazemos a partir de uma imagem mental, estática, como se fosse observada de um ponto de vista específico. Crianças e pessoas autistas possuem uma incrível capacidade de manipular o posicionamento de objetos mentalizados por meio de rotações e inclinações. Com a aquisição da linguagem, a criança passa a generalizar coisas através de arquétipos, e essa habilidade de visualização vai se atrofiando. Quando um artista imagina uma escultura, ele a produz a partir desta imagem , vista deste ângulo fixo, e no momento em que o objeto está pronto , esse mesmo artista se posiciona em relação à sua obra quando encontra o ponto de observação que o permitirá ver a escultura exatamente como o havia imaginado antes. Uma vez que a imagem da coisa real e a memória da coisa mental se encontram, um ciclo se fecha, e o artista está satisfeito “

Este relato de Vik Muniz explicita de forma contundente a tensão entre o projeto poético e o processo comunicativo do artista.

A perfeição da fotografia de Peter Muscato desestabiliza o seu processo poético já que o fotografo, chamado para o registro documental, não está envolvido em todas as sutilezas do seu processo de criação e como diz Vik Muniz, não pode perceber o ângulo certo da imagem mental que gerou a obra. A relação do artista com a fotografia é portanto uma continuidade do processo criativo e esclarece o seu fazer, na ampliação da relação entre memória e imaginação.

A imagem produzida no final é para o artista: cinemática, nunca estável. Quando estamos perto das obras de Vik Muniz, executamos uma espécie de dança, buscando compreender a miríade de camadas e conjunções que ele executa. Queremos saber do que foi feita, como foi feita, quanto tempo levou para produzir. Os seus processos híbridos de corte, colagem, pintura , fotografia com nove a doze camadas de geração de imagens, trazem sempre uma dúvida em seu rastro manual, um mergulho na ambiguidade.

Na exposição Superfícies ele fala um pouco sobre deste seu jogo com o público e esta inteiração de corpo inteiro com a obra que provoca e questiona : O que você está vendo ?

Escute este episódio em nosso podcast :

https://anchor.fm/residenciacriativa/

O artista também retomou um diálogo com o Cubismo de Georges Braque, Juan Gris ,Pablo Picasso e renomeou de Fotocubismo. Ele diz :

“A fotografia coagula o plano pictórico em algo tão certo, que para transcender aquela realidade dura os pintores começaram a tentar criar imagens a partir da forma como as percebemos. Aí entram inúmeros determinantes: o tempo, o movimento, a memória. O que nós percebemos de uma imagem é muito mais próxima de uma pintura cubista do que de uma fotografia. Eles estavam re-definindo uma ideia de realismo negociável”

Vik busca, portanto, levar ao paroxismo a relação entre a fotografia e pintura recriando vários quadros destes artistas.

Superfícies : Três músicos a partir de Pablo Picasso, 2021 . Impressões jato de tinta em papel archival montadas em camadas

A brincadeira parece não ter fim, a fotografia que surge como uma necessidade de documentação do trabalho em escultura agora é uma das camadas de suas intrincadas colagens tridimensionais. Seu artigo do livro Epistemas termina com um convite

“Existe entre o mundo das coisas e o mundo das idéias um lugar que, apesar de parecer pequeno, nebuloso e mesmo contraditório, possui uma energia própria, constante , e uma evolução viva e permanente “

E pra você que lugar é este ?

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